“A pobreza e a degradação ambiental são dois lados da mesma moeda. Esta é a certeza que permeia a encíclica “verde” do papa Francisco. Nela, também estiveram envolvidas, direta ou indiretamente, duas personalidades influentes na América Latina: o austríaco Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu, e o teólogo brasileiro Leonardo Boff. Em artigo escrito com exclusividade para a Deutsche Welle, Boff responde às principais questões sobre a encíclica ecológica.
Por que a encíclica é especial
É a primeira vez que um papa aborda o tema da ecologia no sentido de uma ecologia integral (que vai além, portanto, da ambiental) de forma tão completa. Grande surpresa: elabora o tema dentro do novo paradigma ecológico, coisa que nenhum documento oficial da ONU até hoje fez. Fundamental é seu discurso com os dados mais seguros das ciências da vida e da Terra. Lê os dados afetivamente (com a inteligência sensível ou cordial), pois discerne que, por trás deles, se escondem dramas humanos e muito sofrimento também por parte da mãe Terra.
Influência da América Latina
O papa Francisco não escreve na qualidade de mestre e doutor da fé, mas como um pastor zeloso, que cuida da casa comum e de todos os seres, não só dos humanos, que moram nela.
Um elemento merece ser ressaltado, pois revela a “forma mentis” (a maneira de organizar o pensamento) do papa Francisco. Este é tributário da experiência pastoral e teológica das igrejas latino-americanas que, à luz dos documentos do episcopado latino-americano (CELAM) de Medellin (1968), de Puebla (1979) e de Aparecida (2007), fizeram uma opção pelos pobres, contra a pobreza e em favor da libertação.
O texto e o tom da encíclica são típicos do papa Francisco e da cultura ecológica que acumulou. Mas me dou conta de que também muitas expressões e modos de falar remetem ao que vem sendo pensado e escrito principalmente na América Latina. Os temas da “casa comum”, da “mãe Terra”, do “grito da Terra e do grito dos pobres”, do “cuidado”, da interdependência entre todos os seres, dos “pobres e vulneráveis” da “mudança de paradigma” do “ser humano como Terra” que sente, pensa, ama e venera, da “ecologia integral” entre outros, são recorrentes entre nós.
A estrutura da encíclica obedece ao ritual metodológico usado por nossas igrejas e pela reflexão teológica ligada à prática de libertação, agora assumida e consagrada pelo papa: ver, julgar, agir e celebrar.
Primeiramente, revela sua fonte de inspiração maior: São Francisco de Assis, chamado por ele de “exemplo por excelência de cuidado e de uma ecologia integral e que mostrou uma atenção especial aos pobres e abandonados”.
Meio ambiente e pobreza
O papa incorpora os dados mais consistentes com referência às mudanças climáticas, à questão da água, à erosão da biodiversidade, à deteriorização da qualidade da vida humana e à degradação da vida social, denuncia a alta taxa de iniquidade planetária, afetando todos os âmbitos da vida, sendo que as principais vítimas são os pobres.
Nesta parte, traz uma frase que nos remete à reflexão feita na América Latina: “hoje não podemos desconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social que deve integrar a justiça nas discussões sobre o ambiente para escutar tanto o grito da Terra quanto o grito dos pobres”. Logo a seguir acrescenta: “gemidos da irmã Terra se unem aos gemidos dos abandonados deste mundo”. Isso é absolutamente coerente, pois logo no início diz que “nós somos Terra”, bem na linha do grande cantor e poeta indígena argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é Terra que caminha, que sente, que pensa e que ama”.
Condena a proposta de internacionalização da Amazônia que “apenas serviria aos interesses das multinacionais”. Há uma afirmação de grande vigor ético: “é gravíssima iniquidade obter importantes benefícios fazendo pagar o resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da degradação ambiental”(n.36).
Com tristeza reconhece: “nunca temos ofendido nossa casa comum como nos últimos dois séculos”. Face a esta ofensiva humana contra a mãe Terra, que muitos cientistas denunciaram como a inauguração de uma nova era geológica – o antropoceno – lamenta a debilidade dos poderes deste mundo que, iludidos, “pensam que tudo pode continuar como está” como álibi para “manter seus hábitos autodestrutivos”, com “um comportamento que parece suicida”.
O papel de cientistas e estudiosos do clima
Prudente, o papa reconhece a diversidade das opiniões e que “não há uma única via de solução”. A encíclia dedica todo o terceiro capítulo à análise “da raiz humana da crise ecológica”. Aqui o papa se propõe a analisar a tecnociência, sem preconceitos, acolhendo o que ela trouxe de “coisas preciosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano”.
A tecnociência se tornou tecnocracia, uma verdadeira ditadura com sua lógica férrea de domínio sobre tudo e sobre todos. A grande ilusão, hoje dominante, reside na crença de que com a tecnociência se podem resolver todos os problemas ecológicos. Essa é uma diligência enganosa porque “implica isolar as coisas que estão sempre conexas”. Na verdade, “tudo é relacionado”, “tudo está em relação”, uma afirmação que perpassa todo o texto da encíclica como um ritornelo, pois é um conceito-chave do novo paradigma contemporâneo. O grande limite da tecnocracia está no fato de “fragmentar os saberes e perder o sentido de totalidade”. O pior é “não reconhecer o valor intrínseco de cada ser e até negar um peculiar valor do ser humano.
Papa Francisco propõe uma “ecologia integral” que vai além da costumeira ecologia ambiental. O espírito terno e fraterno de São Francisco de Assis perpassa todo o texto da encíclica Laudato sí. A situação atual não significa uma tragédia anunciada, mas um desafio para cuidarmos da casa comum e uns dos outros. Há no texto leveza, poesia e alegria no Espírito e inabalável esperança de que se grande é a ameaça, maior ainda é a oportunidade de solução de nossos problemas ecológicos.”