Marcos escreveu seu evangelho para convocar a comunidade a renovar sua fé em Jesus Cristo ressuscitado, que nos precede na Galiléia, onde residiam os seus primeiros discípulos (cf. Mc 16,7). O evangelista faz uma nova evangelização da sua comunidade, que passava por uma grave crise. Muitos vocacionados de Jesus desanimaram diante dos desafios da missão (cf. Mc 9,18), outros descuidaram dos processos de formação (cf. Mc 9,36-37) e havia muitas desistências (cf. Mc 14,50-52). Também existiam os falsos discípulos (cf. Mc 13,22), as lutas pelo poder (cf. Mc 9,34), os escândalos (cf. Mc 9,42-47), os problemas familiares (cf. Mc 10,1-12) e as dificuldades nas relações com outras comunidades (cf. Mc 9,38-40). O evangelista, respondeu a esta situação com um novo anúncio da “Boa Notícia de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). Marcos nos recorda que ser discípulo significa ingressar na escola de Jesus e tornar-se discípulo. É caminhar com o “Filho de Deus” pelas estradas da Galiléia deixando para trás o barco, as redes e a família (cf. Mc 1,16-20).
1. A família de Jesus
Em Marcos encontramos uma passagem onde os familiares de Jesus diziam: ele “está ficando louco” (Mc 3,20.21). Os escribas e defensores da Lei e das tradições acusavam Jesus dizendo que ele estava possuído por Belzebu (cf. Mc 3,22-30). Em seguida, Marcos mostra a Mãe e os irmãos de Jesus, que viajaram uns 40 km até Cafarnaum para levá-lo de volta à pacata Nazaré. Sua família estava preocupada e não entendia Jesus, que criticava as estruturas, questionava os escribas vindos de Jerusalém e anunciava a proximidade do reino de Deus (cf. Mc 1,15). A loucura geralmente era interpretada como uma possessão demoníaca. Assim, compreendemos porque os escribas diziam: Jesus está possuído por Belzebu. E seus parentes afirmavam: ele está enlouquecendo. Tanto os familiares quanto os defensores da Lei não compreenderam Jesus, o qual dizia pertencer à família dos que fazem “a vontade de Deus”.
Vejamos o texto de Marcos:
“Nisso chegaram a mãe e os irmãos de Jesus. Ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo. Ao seu redor estava sentada muita gente. Disseram-lhe: Tua mãe e teus irmãos e irmãs estão lá fora e te procuram. Ele respondeu: Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? E passando o olhar sobre os que estavam sentados ao seu redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos! Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,31-35 // Mt 12,46-50 // Lc 8,19-21).
2. A preocupação dos familiares
O texto começa com a chegada da “mãe e os irmãos de Jesus” à casa de Cafarnaum (cf. Mc 3,31). Sua família está preocupada e desde o lado de fora da casa “mandaram chamá-lo”. Segundo seus parentes, ele perdeu o juízo, está fora de si ou “está ficando louco” (Mc 3,20.21).
A atitude dos familiares de Jesus se justifica, quando consideramos a situação política, social e religiosa das famílias pobres da Galiléia. Seus parentes temiam que Jesus comprometesse a si mesmo e a toda a sua família ao questionar os defensores da Lei e das tradições.
O evangelho de Marcos foi escrito por volta dos anos 70, quando a Palestina vivia sob forte tensão com o Império Romano, que ameaçava destruir Jerusalém. Neste período, a Palestina se dividia em três regiões: a Judéia no sul, a Samaria no centro e a Galiléia no norte. Os galileus eram vistos com certa desconfiança pelos escribas de Jerusalém (cf. Mc 3,22). Estes acusavam os galileus de hereges porque se relacionavam com os pagãos e não observavam rigorosamente a Lei judaica. Assim, compreendemos a preocupação dos familiares de Jesus em protegê-lo deste ambiente hostil. Eles sabiam que as palavras e as atitudes de Jesus o colocavam em uma situação de risco, sobretudo quando se considerava a presença dos escribas que vieram de Jerusalém, coração do judaísmo.
A expressão “está ficando louco”, na realidade, é uma forma de abrandar a situação. Pois, se Jesus não estava louco, a questão ficava ainda mais comprometedora para ele mesmo e para seus familiares. Seus parentes não entendiam suas palavras e nem compreendiam suas atitudes. Por isso, queriam levá-lo de volta para casa, afastando-o de sua missão: “De fato, nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele” (Jo 7,5).
3. Os irmãos de Jesus
A questão dos irmãos de Jesus já foi tema de calorosos debates entre os biblistas. Nos relatos dos evangelhos da infância, segundo Mateus e Lucas, vimos a convicção das comunidades na concepção virginal de Maria por obra do Espírito Santo. Mas o tema da virgindade de Maria volta a esquentar quando consideramos algumas passagens do quarto evangelho, do livro dos Atos dos Apóstolos e de alguns escritos paulinos (cf. Jo 2,12; 7,3.5.10; At 1,14; 1Cor 9,5; Gl 1,19). O próprio Marcos menciona os nomes dos irmãos de Jesus: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E suas irmãs não estão aqui conosco? E ele se tornou para eles uma pedra de tropeço” (Mc 6,3). Comparando esta passagem de Marcos com os textos paralelos dos outros evangelistas, percebemos que ele é o único a silenciar e a não dizer nada sobre José. Talvez este seja um aceno indireto de Marcos à concepção virginal de Maria e um modo de indicar a origem divina de Jesus (cf. Mc 8,38; 13,32; 14,36).
Mateus
“Não é ele o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria, e seus irmãos não são Tiago, José, Simão e Judas?” (Mt 13,55)
Lucas
“Todos testemunhavam a favor dele, maravilhados com as palavras cheias de graça que saíam de sua boca. E perguntavam: Não é este o filho de José?” (Lc 4,22)
João
“Diziam: Este não é Jesus, o filho de José? Não conhecemos nós o seu pai e sua mãe? Como pode, então, dizer que desceu do céu?” (Jo 6,42)
No Proto-evangelho de Tiago, notamos certa preocupação de explicar os irmãos de Jesus e evidenciar a virgindade de Maria. José, diante da proposta de se casar com a jovem Virgem Maria, responde: “Tenho filhos e sou velho, enquanto ela é moça” (IX,2; XVIII,1). Deste modo, estes irmãos seriam filhos de José, mas não eram filhos da Virgem Maria e nem irmãos de Jesus. O termo hebraico para indicar “irmão” – aha –, quando traduzido na língua grega – adelfos – pode significar irmão de sangue, primo, parente e até mesmo conterrâneo (cf. Gn 13,8; 29,12.15; 37,16; Lc 10,4). Marcos, que escreve seu evangelho na língua grega – Koiné – poderia ter adotado outros termos mais específicos como “nepsios” (cf. Cl 4,10). No entanto, vale observar que estes irmãos e irmãs nunca foram chamados de filhos de Maria, a Mãe de Jesus. Se confrontamos os textos de Mc 6,3 com Mc 15,40 descobrimos que eles são filhos de uma outra Maria.
“Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E suas irmãs não estão aqui conosco? E ele se tornou para eles uma pedra de tropeço” (Mc 6,3).
“Estavam ali também algumas mulheres olhando de longe, entre elas Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago Menor e de Joset, e Salomé” (Mc 15,40).
Este é um dos motivos pelos quais os católicos tradicionalmente os consideram primos ou parentes de Jesus. Na língua grega, o termo “irmão” pode ser traduzido por primo ou por um familiar próximo. Evidentemente, não podemos esquecer que o primeiro significado da palavra “irmão” é “irmão”.
A tradição católica, considerando as diversas possibilidades de tradução do termo hebraico “irmão”, apoiando-se nos relatos de Mateus e Lucas, que manifestam de modo claro a concepção virginal de Maria e, observando que os evangelistas nunca chamam os “irmãos” de Jesus de filhos de Maria, desde S. Jerônimo (383 d.C), entende que estes “irmãos” na realidade são primos de Jesus. A tradição da Igreja protestante reconhece estes personagens como “irmãos” de sangue de Jesus. Ambas tradições buscam argumentos na Sagrada Escritura para justificar suas posições.
4. A nova família de Jesus
Muitos estudiosos acreditam que a frase “Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,35), foi usada na polêmica contra a comunidade de Jerusalém, que defendia uma espécie de “dinastia religiosa”. Esta comunidade era coordenada por Tiago e outros familiares de Jesus criticados pelo evangelista. Eles reivindicavam certos “privilégios” por seu parentesco com Jesus. Porém, Marcos observa que o importante para os vocacionados de Jesus não é o grau de parentesco, mas a adesão e a coerência de vida com os ensinamentos do “Filho de Deus” (Mc 15,39).
No texto notamos uma sutileza do evangelista quando diz que a mãe e os irmãos de Jesus chegaram e “ficaram do lado de fora” (Mc 3,31). Os familiares não conseguem entrar na casa que estava cheia. No passo seguinte, o autor observa que ao redor de Jesus “estava sentada muita gente” (Mc 3,32). Assim, o evangelista mostra certa distância entre os familiares, que estão do lado de fora e aqueles que estão dentro da casa, sentados ao redor de Jesus. Os que estão do lado de fora querem interromper a atividade evangelizadora de Jesus e levá-lo de volta para Nazaré. As pessoas dentro da casa, sentadas ao redor de Jesus, estão numa posição de discípulos, que ficam em volta do Mestre e acolhem os seus ensinamentos. Deste modo, observamos a coerência desta cena com a passagem do evangelho de Marcos, onde Jesus chama os doze vocacionados antes de tudo para “estarem com ele” (Cf. Mc 3,13-19).
Marcos menciona uma pessoa anônima que anuncia a Jesus: “Tua mãe e teus irmãos e irmãs estão lá fora e te procuram” (Mc 3,32). Mas Jesus surpreende a todos reagindo com firmeza: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?” (Mc 3,33). A partir deste questionamento, o evangelista começa a assinalar a nova realidade familiar de Jesus: Ele, “passando o olhar sobre os que estavam sentados ao seu redor” (Mc 3,34), numa atitude de Mestre rodeado pelos seus discípulos, diz novamente com firmeza: “Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,35).
O gesto de Jesus – “passando o olhar sobre os que estavam sentados ao seu redor” –, manifesta seu amor a todos, que se sentem atraídos por ele e escutam a sua palavra. No início deste mesmo capítulo de Marcos, vemos Jesus passar um olhar de tristeza diante da dureza dos corações dos fariseus (cf. Mc 3,5; 10,23; 11,11). Ao jovem rico Jesus olhou com amor antes de convidá-lo a deixar tudo e segui-lo (cf. Mc 10,21).
Segundo o evangelista, Jesus não nega os laços familiares que o unem à sua mãe e aos seus irmãos, mas propõe um novo modelo de relação baseado na fé, a qual se concretiza no cumprimento da vontade de Deus. Esta resposta de Jesus é um claro elogio a Maria que, desde o momento da anunciação do anjo, cultiva um vínculo com o Filho muito mais forte que o do sangue (cf. Lc 1,26-38). Maria é a primeira discípula, seguidora do Filho, que ela gerou por obra do Espírito Santo. No evangelho de Lucas, o próprio Jesus tecerá um elogio público à sua mãe (cf. Lc 11,27-28).
5. Escutar e cumprir a palavra de Deus
Na resposta de Jesus à pergunta que ele mesmo formulou, notamos uma distinção entre os que escutam a palavra e os que cumprem a vontade de Deus (cf. Mc 3,35). Não basta escutar a palavra, mas é preciso colocá-la em prática para pertencer à nova família de Jesus (cf. Mt 7,24; Lc 8,21). Os que escutam esta palavra, mas não assumem seu projeto de vida serão criticados e considerados indignos (cf. Lc 9,62).
Maria é modelo de vocacionada seguidora de Jesus. Ela acolhe e vive fielmente sua palavra. A Mãe, que desde a manjedoura de Belém meditava tudo no seu coração (cf. Lc 2,51), compreendeu a “loucura” de Jesus (Mc 3,21). Pois, “o que é loucura de Deus é mais sábio que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens” (1Cor 1,25).
6. Jesus, o mestre de Israel
No capítulo seis de Marcos, vemos Jesus visitar Nazaré com seus discípulos (cf. Mc 6,1-6 // Mt 13,53-58 // Lc 4,16-30). Segundo este evangelista, Jesus está sempre acompanhado por seus vocacionados e os leva para todos os lados.
Em Nazaré passou uma situação semelhante àquela de Cafarnaum: no primeiro momento os nazarenos ficaram entusiasmados com os seus ensinamentos e com o jeito de Jesus na sinagoga. Mas logo começaram as perguntas:
– “De onde lhe vem isso?”
– “Que sabedoria é esta que lhe foi dada?”
– “E esses milagres realizados por suas mãos?”
– “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão?”
– “Suas irmãs não estão aqui conosco?”
As primeiras perguntas dos conterrâneos são sobre a procedência da sabedoria dos ensinamentos de Jesus. Os nazarenos conhecem o “carpinteiro” e sabem que ele não freqüentou a escola de Jerusalém, e nem pertencia à classe dos escribas e dos fariseus, os quais eram responsáveis pela interpretação das Escrituras (cf. Jo 7,15). Em seguida, eles perguntam por seus milagres. Pois, o evangelista apresenta Jesus não apenas como o novo mestre de Israel, superando os doutores da Lei, mas realizando milagres que apontam para a chegada do reino de Deus (cf. Mc 1,15). Trata-se de uma sabedoria acompanhada por uma prática libertadora, a qual deixa seus ouvintes admirados (cf. Mc 6,2).
Depois deste início de entusiasmo e admiração, os nazarenos questionam a origem de Jesus e não admitem que um simples carpinteiro, “filho de Maria”, possa ser mais sábio que os mestres das sinagogas. Eles não aceitam que uma pessoa conhecida, de origem humilde, possa se comportar como mestre. Os nazarenos se preocupam mais com a origem simples de Jesus do que com a Boa Notícia anunciada por ele a todo o povo de Israel. Assim, eles passam do entusiasmo e da admiração para uma situação de escândalo, incredulidade e rejeição do carpinteiro, “filho de Maria” (Mc 6,3).
Neste episódio, o evangelista demonstra que muitas pessoas, inclusive os conterrâneos de Jesus, rejeitaram a sua mensagem e o seu messianismo. Os nazarenos, e muitos de Israel, não acolheram a manifestação de Deus no “filho de Maria”. Esta rejeição culminará na condenação e morte de Jesus. Deste modo, ele terá o mesmo destino dos profetas, que foram condenados pelos antigos, conforme denunciou Lucas: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados” (Lc 13,34).
Diante da incredulidade e rejeição dos nazarenos, Jesus não pôde realizar nenhum milagre (cf. Mc 6,5). Pois os milagres são manifestações da fé na pessoa de Jesus. Sem a fé, os milagres perdem o sentido e impossibilita Jesus de realizar a prática que indica a chegada do reino. Daqui para frente, no evangelho de Marcos, o “filho de Maria”, impressionado pela falta de fé dos nazarenos (cf. Mc 6,6), seguirá o seu caminho com os vocacionados e não pisará mais em nenhuma sinagoga.